Circuito W Torres del Paine - Uma travessia mágica
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Sete da manhã em ponto estava na porta com a mochila nas costas pronta pra sair de casa, uma foto com o celular pra guardar de lembrança porque Aline depois dessa aventura estará diferente.
No pátio do terminal em Calafate, mochileiros do mundo todo com suas mochilas gigantes e pés quase arrastando vinham de diferentes direções feito zumbis. Eu era uma.
Depois de alguém me dar carona por um trecho no centro de Calafate o assento espaçoso número quatro no ônibus foi a segunda sorte do dia.
Horas depois já aproximava da fronteira e eu estava com muito sono pós marmitinha que comí ao meio dia em durante as retas da rota 40. Nesse trecho entramos em uma estrada de chão em direção ao passo rio Don Guillermo. A saída da Argentina fica no meio de algo que parece uma fazenda antiga e literalmente cruzamos uma porteira após passar pela imigração.
Era noite Nátales e à estas horas queria estar contando como essa cidade é pitoresca e como foi rever meu amigo Pato, que aliás me ajudou muito a planejar o circuito da maneira mais barata possível, mas estou no hospital de Nátales esperando para ser atendida por que fui atacada por um cachorro enorme na rua. Primeiro um pequeno o popular alarme, mordeu minha perna e logo apareceu um muito grande eu me virei e ele acabou mordendo meu traseiro bombástico. Com minha roupa ensanguentada, assustada e sem dignidade nenhuma tenho certeza que nada pior vai me acontecer.
A segunda-feira amanheceu tranquila, o hematoma já não dói tanto. Me dirijo ao terminal para tomar o coletivo até Torres del Paine, a minha nova meta de vida viajante é encontrar mais terminais pelo mundo com tantos mochileiros reunidos, é como uma grande convenção de viajantes.
Enquanto aproximávamos do parque, ao fundo as montanhas se tornavam cada vez mais majestosas. Junto com o entusiasmo me vem uma cólica tremenda o que esperei por toda semana, chegou hoje e tudo que pensava era “ Aline, mantenha a paz, dor você vai ter e não vai ser em uma só parte do seu corpo, tenha paciência, pensa positivo e foco no objetivo objetivo, isso é só mais um obstáculo”.
Ainda tinha que comprar a entrada na portaria do parque pois meu celular não estava acessando a internet e a ideia de não entrar era mais assustadora que a cólica. O rapaz da recepção: “Registre seu nome aqui e quando encontrar sinal de Wi-Fi você compra entrada“. Entrei e passeia a viver a melhor experiência da minha vida até agora.
Sempre que começo um trecho de sendero saio apressada pensando quanto tempo tenho e quantos quilômetros devo fazer para alcançar o objetivo diário. Mas conforme vou me distanciando em meio ao nada com horizonte mais impressionante que o outro é como se desligasse tudo dentro de mim e ficasse somente pensamentos rápidos de muitas coisas, memórias e planos que chegam como um ônibus em um terminal fechado. Eles chegam ninguém sobe, eles vão embora. Agora estou aqui sentada no mirante diante de uma laguna cor azul grafite que devem estar refletindo as nuvens no céu que estão um pouco pessimistas. Ao fundo tem montanhas nevadas e nas minhas costas o Paine Grande com rochas de diferentes cores a neve pendurada no seu topo e pássaros no bosque encomodados com a doida sentada numa pedra escrevendo num caderninho com lápis quase sem ponta.
Parte do meio do "W" praticamente uma hora escalando pedras no que chamam sendero Cuernos del Paine para ter uma das vistas mais impressionantes da minha vida. Quando cheguei no camping Italiano no começo do sendeiro só enxergava montanha ao fundo e pensava "onde está o caminho?" Sim, a montanha era o caminho que leva ao primeiro mirador, o Francês que se resume a um cume de pedra adiante da imponente montanha negra com cobertura de gelo que se derrete e forma um rio turbulento e apressado que acompanha o sendeiro. O som do gelo acima da montanha se mistura com os muitos idiomas que se escuta dos demais aventureiros, que sentados em diferentes alturas desse cume, esperam entusiasmados por um grande desprendimento de gelo do topo da montanha. Na volta ao camping Paine Grande já estava me preparando psicologicamente para o banho frio mas resolvi ir a outro banheiro que encontrei pela manhã, o banheiro dos dolmos, ali havia água quente. Esqueci de levar um pente meus cabelos estão cheios de nós por conta do vento Patagônico, mas pelo menos estão limpos. O hematoma está cada vez mais feio e hoje durante os vinte e oito quilômetros que caminhei foram várias as vezes que vi uma pedra ou ponte me convidando para descansar e me atirei como se tivesse as duas nádegas boas.
Na manhã seguinte me esperam uns doze quilômetros com carga nas costas, meio traseiro dolorido, pés cansados com mais de quarenta quilômetros feitos e possível chuva já que as nuvens escuras estão chegando rápido, vou sair cedinho para chegar em tempo de armar acampamento no camping novo. Terceiro dia em Torres del Paine, os doze quilômetros, que calculei mal pra variar, se tornaram vinte e seis quilômetros. Sete e meio até o Italiano, caminho já conhecido e com o sol despertando tornando a cena ainda mais incrível, vários arco-íris formados pela névoa trazida pelo vento desde o topo de Paine Grande e garoas que passavam tão rápido quanto chegavam. Avancei até o Francês por mais dois quilômetros direto, planejei almoçar lá mas não tinha fome então comi meu último alfajor pra dar uma energia rápida e um quentinho no coração. Nessa hora me deparei com uma flecha indicando “Camping Cuernos 4,5km“ “Camping Central 13km“. Era no Central que eu devia chegar para passar a noite e ter tempo hábil para fazer o trekking base Torres e encerrar o circuito no dia seguinte.
Que travessia, o vento começou a castigar desde o primeiro trecho mas depois do Francês que me preocupou, pois eu estava em um local muito íngreme. Uma hora de treking pavorosa que terminou comigo na beira do barranco gritando "Help! Help!" por que fui jogada de cara no chão com a mochila por cima, foi tão rápido que quando vi já estava assim, um pouco adiante havia um homem que veio me ajudar sustentando minha mochila para eu poder ajoelhar-me e levantar-me. "Are you ok?" Olhei minhas mãos e não havia nenhum corte, minha roupa minha mochila frontal tinham a marca da esfolada que o vento me deu no chão. “I’m ok, thank you so much ”. Ambos rindo muito porque isso foi mais engraçado que perigoso, nesse ponto não tinha penhasco mas serviu de treino e alerta para trechos seguintes.
Nos primeiros dias aprendi a dinâmica do sendeiro. Você sai mais ou menos junto com um grupo, uns mais rápidos outros mais lentos sempre tem pessoas te ultrapassando ou ficando pra trás. Na metade vai encontrar quem está voltando ou por que saiu bem mais cedo ou está fazendo o caminho reverso. Depois provavelmente você não encontrará mais ninguém. Nesse último trecho da travessia, andei tanto só que deu tempo de falar sozinha, rir, chorar, lembrar de muitas pessoas e de sentir saudades. Todo tempo lembrava minha professora me dizendo “diminui mas não para.” A três dias sem absolutamente ninguém saber de mim começo a pensar como Supertramp pensava: O que as pessoas estão fazendo nesse momento? Será que estão preocupadas, será que lembram de mim?
Queria que soubessem que eu nunca estive tão feliz e bem e apesar das circunstâncias, me sentindo tão segura. Mas eu já havia avisado que não daria notícias até terminar o desafio e que estaria bem, ou faria o possível para estar.
Liberdade na sua forma mais pura possível. Fiz tudo que me propus, quis me desafiar, mas acima de tudo queria sentir essa sensação de completo descontrole tudo dependia da natureza e do meu esforço perante as adversidades. Nas últimas três horas da travessia, encarei muita chuva e depois de lutar muito com o que chamei de fantasia de tartaruga, a capa de chuva gigante e verde que se enroscava em tudo e virava com o vento tapando meu olho, eu fiz umas amarrações e nos tornamos amigas. Ela me ajudou com o frio que chegou depois da chuva e serviu de soleira na barraca no acampamento novo.
A paisagem mudou tanto que nem lembro de tudo mas andei em costões, em caminhos nas colinas, em uma praia de pedras, em bosques fechados e em campos abertos. Olhava no final do horizonte e enxergava um fio que depois percebia que era o sendero que eu iria passar, aconteceu muitas vezes. Enquanto isso eu lembro que as pessoas sempre me pedem se eu tenho medo de viajar sozinha. Sempre tenho, mas nesses quatro dias eu experimentei estar numa situação que, sim tinha perigos, mas que fez eu me sentir mais segura do que nunca, sabia que nesse lugar era como um refúgio da vida real para todos que estavam ali. Cada um com seu motivo, todos tentando se superar.
Lá pelas tantas, vejo meu isolante térmico cair e quase ser arrastado pelo vento. Estava frouxo porque infelizmente em algum ponto do caminho a barraca se desprendeu e caiu, eu havia perdido a minha casa "que bajón!" Lacrei a mochila, coloquei encima de uma pedra com o isolante bem preso desta vez, e depois de marcar a hora, voltei pelo caminho até encontrar a birrenta. Estava perto e eu só agradeci o universo, pq não teria opção a não ser encontrá-la em cinco minutos ou em cinco horas voltando pelo sendeiro.
Enfim cheguei. Sete da noite já estava pronta pra dormir, o menino do Camping Central me avisou que o dia seguinte estaria perfeito para ver o sol nascer diante das torres e que se eu saísse às quatro da manhã às oito estaria lá. Me programei mesmo sem saber se teria força suficiente, já que era o terceira noite dormindo pouco e muito cansada. Até então não tinha passado frio na barraca, nem mesmo na segunda noite que o Vento Patagônico varreu Camping Paine Grande a noite toda. Mas essa noite foi terrível, me despertava tremendo e precisava esfregar as mãos nas pernas pra recuperar o sentido e produzir calor. Me animei para sair às quatro já que aproveitaria bem mais do que tentando dormir. Um grande grupo teve a mesma audácia e todos caminharam pela escuridão até a base Torres, cada um no seu ritmo, aos poucos todos se distanciaram e seguiram tempos diferentes. Os sessenta e oito quilômetros já percorridos me cobravam e eu fiquei sozinha e por último por três horas e meia vendo só onde eu iria pisar com a luz da lanterna e ouvindo sons de cada trecho.
Na volta pro camping vendo o caminho que eu tinha feito em meio a escuridão eu realmente só pensava e me perguntava como eu consegui. O caminho era tremendo em beleza e em dificuldade. Alguns dizem que todos ganho tem seu preço, eu prefiro dizer que todo esforço tem sua recompensa. Ver as torres coloradas com os primeiros raios do sol, a laguna gelada e azul na sua base refletindo enquanto o vento rompe o espelho formado pela água límpida, após uma grande jornada de desafios e lindos momentos, com certeza fez valer a pena. Torres del Paine é um lugar mágico para se desconectar, para curtir com alguém ou para superar limites. Estou imensamente feliz pela experiência e por conseguir registrar da minha maneira e compartilhar tudo que senti com vocês escrevendo com meu lápis sem ponta ou com luz através da câmera, afinal “a felicidade só é real quando compartilhada”.

Essas são as "somente 36 fotos" que me desafiei a fazer nos quatro dias de montanha, não queria depender de carregador de bateria, mas sabia que não teria suficiente pra usar a câmera o tempo todo. Então, além de sobreviver, completar o Circuito W com mais de noventa quilômetros de treking, gravar videos pra inspirar e ensinar pessoas sobre o circuito, eu me propus a registrar em fotos autorais toda minha experiência pessoal e usando apenas um rolo de filme imáginário de 36 poses.


































